21.10.15

Ki e o corpo-passagem

No meu entender, a pesquisa do fluxo de ki é a parte essencial da pesquisa que o Aikido Corpo-Ki pode propor ao praticante. Sentir esse fluxo enquanto se prática, no entanto, não é fácil. Muitos de nós nos focamos mais na sequência de movimentos corporais (põe um pé aqui, faz o giro, a mão aplica a chave, etc...). Nesse ponto o que estamos vivenciando é sobretudo nosso corpo como um corpo-desenhante*, que se empenha nas movimentações circulares do Aikido para conduzir o outro (uke)  e levá-lo a um novo lugar.

Muitas vezes parece mesmo que não há espaço mental para prestar atenção neste fluxo. No entanto, a medida que vamos nos habituando com os movimentos, parece que começa a sobrar um espaço para essa percepção sutil e que no entanto é fundamental para a fruição da harmonia do movimento.

Embora esse aprendizado sobre o fluxo de ki deva ser sobretudo perceptivo, e portanto se dar durante a prática corporal, acredito que buscar reflexões sobre ele, ajuda no processo de incorporação desse conceito em nossas práticas de Aikido Corpo-Ki. Dessa forma, tenho buscado autores que reflitam sobre assuntos pertinentes, como por exemplo,  o filósofo japonês, Yasuo Yuasa, texto apresentado a mim pelo meu colega  Kezo Nogueira.

O conceito de fluxo de energia ki esta presente - coerentemente - em diversos aspectos da cultura oriental. Segundo Yasuo Yuasa,  o fluxo do ki na milenar medicina oriental enfatiza uma relação de extrema importância: a do corpo com o mundo. O corpo para o oriental não é algo destacado do mundo, uma muralha de isolamento para a mente. O corpo faz parte dele e é através da troca de energia ki que essa relação se dá ininterruptamente. O ki do universo nos alimenta e nós, nutrindo-nos com ele, emitimos ki conscientemente ao trocarmos um Reiki, por exemplo, ou ao praticarmos Aikido com consciência corporal.
No trecho de Yuasa (tradução minha):

"Em primeiro lugar, eu gostaria de pontuar a relação entre o corpo e o mundo externo. Como mencionado previamente, os pontos terminais de cada meridiano são os pontos distais dos membros, e existe uma troca de fluxo de ki com o mundo exterior através desses pontos distais.(...) Eu acho que esse ponto é a característica fundamental da teoria oriental do corpo. A medicina moderna primeiro separou o corpo do mundo externo, tomando-o como fechado, um sistema auto-contido, e então dissecando sua estrutura em vários órgãos tentou compreender suas funções respectivas. A medicina oriental , ao contrário, entendeu o corpo com um sistema aberto conectado ao mundo exterior. Ao fazer isso concebeu que, embora indetectável pela percepção sensorial, há uma troca de energia vital de algum tipo entre o corpo e o mundo externo, ou seja, há absorção e liberação de ki entre eles"

Assim, temos que o corpo, mais do que uma unidade blocada e independente,  funciona como um circuito aberto. O corpo carrega em si a potência de ser um corpo-passagem: ao nos conectarmos ao ki universal (que entra sobretudo pelo chakra coronário) nosso circuitos (meridianos) a transportam e  se fizermos isso com consciência, essa energia será transmitida em maior potencial de volta ao mundo, direcionada ao outro com quem praticamos (uke). É nessa hora que a prática alcança um estado todo especial. Quando o par uke/nague se conecta nesse fluxo é quando sentimos um "click": está funcionando! Nesse momento os corpos-desenhantes se complexam em corpos-passagem e dois (uke/nague) tornam-se um no movimento.

*o conceito de corpo-desenhante foi explorado em minha dissertação Diálogos em Linha, disponível para leitura na Biblioteca Digital da Unicamp.